
A CAOLHA
            A      caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado,      braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos;      mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho;      unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre      o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser      áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de      desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus;      dentes falhos e cariados.
              O seu aspecto      infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não      tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada      tinha um defeito horrível: haviam lhe extraído o olho esquerdo;      a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma      fístula continuamente porejante.
              Era essa      pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação      incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda gente.
              Morava numa      casa pequena, paga pelo filho único, operário numa fábrica      de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço      da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres      jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à      proporção que ia crescendo, ia-se a pouco e pouco manifestando      na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia,      tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência      do negócio, passava a comer fora...
              Ela fingiu      não perceber a verdade, e resignou-se.
              Daquele      filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.
              Que lhe      importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe pagasse com um      beijo todas as amarguras da existência?
              Um beijo      dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o triste      coração de mãe! Mas... os beijos foram escasseando também,      com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos braços      e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só      na face direita, aquela onde não havia vestígios de doença;      agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!
              Ela compreendia      tudo e calava-se.
              O filho      não sofria menos.
              Quando em      criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram      logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo -      o filho da caolha.
              Aquilo exasperava-o;      respondia sempre:
              - Eu tenho      nome!
              Os outros      riam e chacoteavam-no; ele se queixava aos mestres, os mestres ralhavam com      os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los - mas a alcunha      pegou. Já não era só na escola que o chamavam assim.
              Na rua,      muitas vezes, ele ouvia de uma ou outra janela dizerem: o filho da caolha!      Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!
              Eram as      irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas pelos      irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que      o viam passar!
              As quitandeiras,      onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lanche, aprenderam depressa      a denominá-lo como os outros, e, muitas vezes, afastando os pequenos      que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás,      com piedade e simpatia:
              - Taí,      isso é para o filho da caolha!
              O Antonico      preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras;      tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro,      num estribilho já combinado:
              - Filho      da caolha, filho da caolha!
              O Antonico      pediu à mãe que não o fosse buscar à escola; e      muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta      do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os      olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas.
              A caolha      suspirou e nunca mais foi buscar o filho.
              Aos onze      anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos,      que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro.      Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo - o filho      da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.
              Além      de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens      e desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda: os seus colegas      agruparam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar      o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão      e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua      saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!
              Depois disso      passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo      às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e      nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo que      o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem      sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe,      a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre      toda a história do filho e suplicou-lhe que não deixasse os      aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!
              Antonico      encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros;      quando o mestre dizia: sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos      lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse sorriso,      se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.
              Decorreram      alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí,      numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre      uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes      mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! Amava      como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável,      de olhos negros como veludos e boca fresca como um botão de rosa. O      Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente      com a mãe; um dia, em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou      como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento      de esquecida ternura!
              Aquele beijo      foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a      encontrar o seu querido filho! Pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa      noite, ao adormecer, dizia consigo:
              - Sou muito      feliz... o meu filho é um anjo!
              Entretanto,      o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor      à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se      esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjecturas.
              Ao princípio      pensava: - É o pudor.
              Depois começou      a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela moreninha      confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse completamente      da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas:      lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho      da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser      alcunhada em breve de - nora da caolha, ou coisa semelhante!
              O Antonico      chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos      tão práticos!
              Depois o      seu rancor se voltou para a mãe.
              Ela era      a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua      infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante      sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher      tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; iria considerar-se      humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe,      vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente...
              Salvava      assim a responsabilidade do protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à      sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor...
              Passou um      dia terrível; à noite, voltando para casa levava o seu projeto      e a decisão de o expor à mãe.
              A velha,      agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo engordurado.      O Antonico pensou: "Ao dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher      a viver em companhia de... uma tal criatura?" Estas últimas palavras      foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou      para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:
              - Limpe      a cara, mãe...
              Ela sumiu      a cabeça no avental; ele continuou:
              - Afinal,      nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!
              - Foi uma      doença, - respondeu sufocadamente a mãe - é melhor não      lembrar isso!
              - E é      sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?
              - Porque      não vale a pena; nada se remedeia...
              - Bem! Agora      escute: trago-lhe uma novidade. O patrão exige que eu vá dormir      na vizinhança da loja... já aluguei um quarto; a senhora fica      aqui e eu virei todos os dias saber da sua saúde ou se tem necessidade      de alguma coisa... É por força maior; não temos remédio      senão sujeitar-nos!...
              Ele, magrinho,      curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo      como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho      começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas      palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olhar      desconfiado e medroso.
              A caolha      se levantou e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu      com doloroso desdém:
              - Embusteiro!      O que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu também      já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!
              O rapaz      saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até      então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo      à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.
              Ela o acompanhou,      fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cabaleante      à parede do corredor e desabafou em soluços.
              O Antonico      passou uma tarde e uma noite de angústia.
              Na manhã      seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve      coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas,      lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho      direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração,      o olho esquerdo arrepanhado, murcho - murcho e sujo de pus; via a sua atitude      altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia      a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego      que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara      no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar      com o perigo de outra semelhante.
              Providencialmente,      lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto,      raramente a procurava.
              Foi pedir-lhe      que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo o que houvera.
              A madrinha      escutou-o comovida; depois disse:
              - Eu previa      isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade      inteira; ela não quis, aí está!
              - Que verdade,      madrinha?
              Encontraram      a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho - queria mandar-lhe      a roupa limpinha. A infeliz se arrependera das palavras que dissera e tinha      passado a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse      apenas... Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando      a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria      amarraram-lhe toda a ação.
              A madrinha      do Antonico começou logo:
              - O teu      rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui      ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe      o que já deverias ter-lhe dito!
              - Cala-te!      - murmurou com voz apagada a caolha.
              - Não      me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz! Quem      cegou a tua mãe foste tu!
              O afilhado      tornou-se lívido; e ela concluiu:
              - Ah, não      tiveste culpa! Eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste      na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse      evitar a catástrofe, tu o enterraste pelo olho esquerdo! Ainda tenho      no ouvido o grito de dor que ela deu!
              O Antonico      caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se      rapidamente dele, murmurando trêmula:
              - Pobre      filho! Vês? Era por isto que eu não queria dizer nada!
************************************
tem coisas maravilhosas que a gente acha pela internet.


